Critica Zeca Camargo – 07/10/10

http://g1.globo.com/platb/zecacamargo/2010/10/07/rocknroll/

Soldado americano em serviço na Alemanha Oriental no final dos anos 80, apaixona-se por adolescente nascido em Berlim, propõe casamento, mas exige antes que o garoto troque de sexo (para que possam viver como “marido e mulher”). Mãe do garoto oferece não só seu passaporte, para o filho poder viver o sonho capitalista “do outro lado do muro”, mas também a própria operação, depois da qual Hansel (seu rebento) torna-se Hedwig, e vai viver em Kansas onde é feliz por um ano até que o soldado o abandona e não o deixa sem opção a não ser formar uma banda de rock.

Em duas frases curtas – ok, nem tão curtas assim -, essa é a base da história de “Hedwig e O Centímetro Furioso”, o musical mais rock’n’roll que você jamais vai ver na sua vida. Mas “Hedwig”, claro, é muito mais – ou muito menos, se você olhar pelo ponto de vista do centímetro furioso… O nome da banda que acompanha o “cantor/cantora” (The Angry Inch, no original) é inspirado no obtuso naco de carne que sobrou entre a virilha do nosso herói durante sua transformação de Hensel para Hedwig – culpa do “açougueiro” que fez a “cirurgia”… Se o seu estômago já revirou só de ler a última frase, recomendo que abandone a leitura deste post por aqui. Caso contrário, siga em frente – “let’s rock”! “And roll”!

Assisti a “Hedwig and The Angry Inch” pela primeira vez em 1999. Pela imprensa internacional, já tinha ouvido falar do sucesso histérico que a peça criada e interpretada por John Cameron Mitchell (com músicas de Stephen Trask) fazia no circuito “off-Broaway” – o cenário alternativo (e geralmente mais interessante) das artes cênicas nova-iorquinas. Estava de passagem pela cidade e, mesmo sem ter seu criador no papel original durante aquela temporada, fiz questão de ir ver.

Amarguei uma caminhada numa noite chuvosa até o West Village, rumo ao então decadente Jane Theater – instalado numa espécie de albergue, ainda mais decadente (que, segundo algumas versões, abrigou parte dos sobreviventes do Titanic!) -, onde comprei um ingresso sem muita certeza do que ia assistir. Já tinha lido algumas críticas e sinopses, que traziam mais ou menos o mesmo tipo de informação que o primeiro parágrafo deste texto. Mas nada poderia ter me preparado para o que eu vi no palco.

A sensação de desconforto já vinha da entrada do teatro. O tal albergue hoje é um “design hotel” até que descolado, mas há pouco mais de dez anos o aspecto era o de um pardieiro. Com uma iluminação claudicante, o único sinal de vida que o local tinha era um velho porteiro aboletado num canto e encapotado como se estivesse pronto para uma expedição no ártico, que sequer se preocupava com quem entrava ou saía do local. Porém, quando as fracas luzes do teatro se apagaram e os poderosos holofotes no palco foram acesos, o que eu presenciei foi uma explosão de vida, de energia, de malícia, de vibração, de libido, de música, de sacanagem, de ironia, de humor, de tudo. De rock’n’roll.

E o que era mais maluco era que o espetáculo conseguia isso com muito pouco. Toda a saga de Hedwig é contada como um monólogo, pelo próprio personagem, com poderosas canções de rock costurando tudo – como se fosse um grande espetáculo de cabaré alternativo. A banda está sempre no palco (que está quase vazio), mas o único outro personagem com quem Hedwig “conversa” é Yitzhak, o “assistente de palco” do show, que faz as vezes também da companhia amorosa, e que também é de origem sexual duvidosa (eu apostaria numa “drag king” – e não estou inventando essa expressão…).

Há ainda Tommy Gnosis, mas ele nunca estava no placo nessa versão original – era apenas evocado em distantes ecos de seus shows em grandes estádios… Ele foi o verdadeiro amor de Hedwig, que o encontrou logo depois que o soldado americano foi embora, deixando sua vida na mais completa miséria. Para Tony, Hedwig compôs um álbum que tornou-se um sucesso. Ele estourou na música pop, mas fugiu assustado quando Hedwig pediu para transar com ele, pela primeira vez, hum, de frente… Por conta disso, todo o show que assistimos, mais que uma biografia do pequeno garoto dissidente da Alemanha Oriental, é um grande lamento ao verdadeiro amor da sua vida… Como não se identificar com isso?

As músicas – totalmente calcadas no espírito do “glam rock” (pense em David Bowie, na primeira metade dos anos 70) – são irresistíveis. Mesmo hoje, mais de dez anos depois, sei cantar o grande tema, “The angry inch”, de cor – bem como “The origin of love” e “Midnight radio” (as outras, sei pelo menos assobiar…). A banda no palco é básica: baixo, guitarra, bateria. Mas quem precisa de mais quando o barulho que eles querem fazer é tão simples e poderoso? Mas o grande segredo mesmo do sucesso da peça – que já foi montada em dezenas de países, além de ter ganho várias encenações nos Estados Unidos mesmo – é quem faz o papel de Hedwig. E nisso a versão brasileira acertou em cheio!

Cheguei a ver a peça em Nova York mais duas vezes – uma com o próprio Mitchell no papel principal (indescritível!) e outra com uma atriz como Hedwig (inesperadamente sem graça). E, claro, assisti à adaptação para o cinema, cujo DVD é daqueles itens que eu salvo em primeiro lugar se minha casa estiver pegando fogo (também é Micthell que faz o papel no filme). Por isso, acho que tenho uma certa “bagagem” para poder afirmar que Paulo Vilhena e Pierre Baitelli encarnaram com perfeição o, hum, espírito de Hedwig!

Isso mesmo! Na montagem brasileira (que está no Rio até o começo de novembro e que torço para que viaje depois pelo Brasil), espertamente dirigida por Evandro Mesquita, o personagem se reveza entre os dois atores – até que um deles (Pierre) se transforma em Tommy, e estabelece, a partir dali, uma nova perspectiva para o espetáculo. Conversando com o próprio Evandro – que coincidentemente estava lá no dia em que fui assistir (é uma sessão “maldita”, quase à meia-noite, no Teatro das Artes, na Gávea) -, ele me explicou que o próprio Cameron gostou da idéia. “No texto”, me contava Evandro, “ele diz pra gente se divertir com a história, e foi isso que eu fiz”.

A adaptação para o português é mais que feliz – e acho que o crédito disso tem que ser dado ao tradutor Jonas Calmon Klabin, que conseguiu não perder nada ao transportar, entre outras coisas, o perturbador (e genial) refrão da música principal do inglês para nossa língua: “I got an angry inch” virou “Agora não me enche”! Cantei junto, sem culpa… E a dupla Klabin/Mesquita também acertou ao adaptar as referências à cultura pop que o texto original faz, situando a trajetória de Hedwig num contexto brasileiro, sem apelação. Mas o brilho maior dessa montagem sem dúvida é da parceria entre Vilhena e Baitelli.

Seria fácil aqui elogiá-los pela coragem de encarnar um personagem tão ousado quanto Hedwig. Enquanto a maioria dos atores da geração deles (a diferença de idade entre os dois é de apenas cinco anos) procura trabalhos seguros, desdobramentos da projeção que a exposição na TV certamente traz, mas nunca sem se distanciar demais da “boa imagem” que possa comprometê-los, esses dois caras dão um passo maior e se atiram à androginia com a segurança de quem sabe que não existe aventura teatral ruim quando você acredita no personagem – e é bom no que faz!

O trabalho de Vilhena é bem mais conhecido na televisão, mas, como sempre, é no teatro que você pode ver que ele não está brincando – apensar de “Hedwig” ser, no fundo, uma grande brincadeira (se for para levar a sério, melhor nem ir assistir…). E Pierre, que ainda experimenta pequenos papéis televisivos como quem coloca o dedo na água de uma lagoa para ver se não está muito gelada, só vem colecionando elogios, tanto na própria TV, como no cinema (“Como esquecer”) e no teatro (“O despertar da primavera”). Os dois juntos? Dinamite! E a mais pura vibração roqueira…

Você que lê sempre este blog certamente já percebeu que teatro não é um assunto ao qual me dedico com frequencia. E a explicação para isso é que esse é um assunto com o qual não tenho muita intimidade – não me sinto muito à vontade para escrever sobre o que não conheço bem. Apesar de ter atravessado, com certo louvor, três anos de Teatro Escola Macunaíma, em São Paulo (um dia ainda vou falar mais sobre isso), e ter de fato atuado profissionalmente nos palcos pelo menos uma vez (em 1994, numa peça chamada “Futebol”, dirigida por Bia Lessa, onde eu fazia o papel de um padre – um assunto que também renderia um bom post um dia desses), o teatro ainda é algo sobre o qual eu consigo elaborar pouco. Mas se me sinto à vontade para escrever hoje aqui sobre “Hedwig e O Centímetro Furioso” é porque o espetáculo “fala comigo” através da sua música. E essa música é o rock!

Vivemos tempos bons para essa mistura desse gênero musical com o teatro. O próprio “Despertar da primavera” – que vi há algum tempo na Broadway e cheguei a comentar por aqui – teve uma ótima recepção com sua montagem brasileira. “Hair” – também aqui já comentado – chega nas próximas semanas para o público brasileiro (e pode ter a certeza de que vou estar na primeira fila). Ainda não vi a adaptação para a Broadway de “American idiot”, do Green Day, mas está na minha lista – assim como o próprio show da banda por aqui daqui a pouco!!! Nesse clima bom, Hedwing é mais que bem-vinda. Junto com seu “centímetro furioso” e o que mais vier…

“Sempre quis montar uma ópera-rock”, falou ainda Evandro Mesquita na conversa informal que tive com ele – e, espero, que ele me perdoe por citá-la aqui como entrevista. Desde que viu o filme (que no Brasil foi batizado de “Hedwig – Rock, amor e traição”), Evando foi atrás de tentar montar o texto por aqui. Mesmo sem ter visto a versão original num teatro, ele teve a “mão” certa para oferecer, pelo menos para esse humilde espectador que vos escreve, uma noite inesquecível. Que, aliás, quero viver ainda outras vezes. “Rocking”. “And rolling”.

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2 Responses to Critica Zeca Camargo – 07/10/10

  1. Could be the BEST read that I read this month?

    Fidel

  2. I’m thrilled that you wrote this post!

    Ed

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