Crítica – Cacilda Blog de Teatro da Folha de São Paulo – 06-09-2011

Embora São Paulo já tenha grandes produtoras de teatro musical, T4F, Takla, é no Rio que o gênero se desenvolve a olhos vistos, talvez pela história que liga a cidade ao gênero, desde sempre, desde a Colônia. (E também pela resistência ao gênero na conservadora classe teatral paulista.)

Não apenas Möeller & Botelho, mas agora Evandro Mesquita abraça o musical com uma naturalidade e um domínio que a opulência das produções paulistas não consegue reproduzir.

Hedwig e o Centímetro Enfurecido“, originalmente um espetáculo off-Broadway de John Cameron Mitchell no fim dos anos 90, encontrou no ex-integrante do Asdrúbal Trouxe o Trombone, também ex-líder da banda Blitz, uma alma gêmea para sua forma e sua mensagem.

A peça conta a história de Hedwig, um cantor/cantora de rock nascido na Alemanha Oriental _e que se identifica com o próprio Muro de Berlim, no limite de dois mundos, no caso, o masculino e o feminino.

Interpretado por dois atores, Pierre Baitelli, de presença mais leve e alegre, e Felipe Carvalhido, que reúne humor e tragédia como poucos, ele/ela é apoiado pelo “backing vocal” de outro ser no limite, Yitzhak, vivido pela atriz e cantora Eline Porto, a grande voz no palco.

Se bem me lembro, é bastante diverso da versão em filme, dez anos atrás, mais naturalista como é regra no cinema americano. No palco, o que se tem é uma profusão de representações alegóricas, míticas, remetendo às religiões, sempre com um pé no humor mais herético.

O humor drag de “downtown” Nova York, mais conhecido aqui por “Irma Vap” ou “Noviças Rebeldes”, ajuda a atravessar as tragédias de Hedwig, que incluem abuso sexual na infância, mutilação sexual, abandono amoroso.

Também torna personagem e história especialmente pungentes, por suas renúncias e persistência. (Comecei com os espasmos de lágrimas no meio da apresentação e fui assim até o final.)

O gênero é propenso aos arrebatamentos emocionais, mas “Hedwig” não é apelativo como Andrew Lloyd-Webber nem ingênuo como os velhos musicais da Broadway: é consciente da ilusão, parece beber no modelo brechtiano de distanciar-se dela seguidamente, até pelo permanente diálogo com a plateia.

Em muitos quadros, beira o cinismo a ponto de arriscar o próprio andamento da narrativa, da apresentação.

O vaivém dos personagens e atores, que se desdobram em dois na inovação maior _e muito bem-sucedida_ de Evandro Mesquita, é particularmente engenhoso, mas também de fácil apreensão pelo público, sem qualquer prejuízo para a trama.

Parte do mito mencionado logo cedo na música “A Origem do Amor”, que adapta o discurso de Aristófanes no “Banquete” de Platão. Éramos seres andróginos e completos, cuja divisão pelo deus tornou incompletos, em busca da outra metade. Do amor.

Postado por Nelson de Sá em http://cacilda.folha.blog.uol.com.br/arch2011-09-04_2011-09-10.html

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